segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

microfoninho para cantar a morte



duas paredes finas na cidade da avó. vento de povoado com cemitério de velho-oeste. visita cercada de bichinhos pretos colados na calça felpuda: metade tapete, metade urso de pelúcia da tia que conduzia as crianças. meia dúzia de gritos que engoliam um líquido espesso de ranço de roça; leite, fubá, besouro, ovo e canela. 
a procissão da morte em uma kombi amarela do vendedor de animais empalhados. de última hora clamaram ao homem de olho de vidro o carro emprestado, a esposa respondeu que a kombi era legado de um outro senhor, dono de circo, morto na redondezas. que tivessem cuidado para o defunto não despertar com o barulho do motor. que não estragassem o punhado de galos que repassariam pr'um bando de garimpeiros alocados na estrada de queimados.
como um carro baqueado de pipoqueiro com aquele micro botijão de gás que terrorista-roliço ameaça praça, coreto, criança, a kombi desfilava. nenhuma explosão, poucos pombos em letargia pela falta de migalhas, espancados pelo coveiro que parecia com o james dean, metade das pernas de feridas escondidas. não havia uma epidemia, era febre de família, morte costumeira. tudo era calculado.
da última vez que relembraram o cortejo fúnebre choraram em gastura pela epiderme de casca de asa ressecada daquela galinha (era galo! beliscava a outra) que mostraram como se fosse mágica da ressurreição. voltaram duas vezes. da primeira vez com a tia de roupas de carpete que exalava naquele batom roxo uma cor de festa de brinquedos estragados, como se aviõezinhos de luzinhas e buzinas descascadas se colassem ali como promessa de uma diversão antiga. da segunda vez, com a mesma tia que carregava agora um filho que nem de longe parecia parente, muito menos primo, tampouco perderiam seus nomes de mascates de que tanto se orgulhavam para se transformarem em prima greta, primo tales, prima margot, prima charlotte, primo saulo, pelo menos não para aquele menino que chorava a morte de um tio-avô com crucifixo e colônia guardada em embalagem de plástico. anunciava a sua missão de quaresma: lavar a lápide. o lodo, o verde-musgo que há exatos sete anos tinha servido para nomear a bola de sorvete de boldo que a mesma tia insistia em prover como especiaria para momentos tristes, para momentos de cruzada-espanto da tristeza. queriam o lodo lá, o lodo era parte da passagem com aquele trenó que nunca chegaria ao polo norte, nem ao céu.
não adiantava excursões. não adiantava o rogo enlouquecido das outras tias que nos ameaçavam com um missal de verbetes altissonantes como broa de milho, memória, acidente, pais, orgulho, cidade, padre, rádio. 
voltava sempre pra despensa dos brinquedos. coloquei o meu-primeiro-gradiente na mochila frankstein, costurada pela colega do curso, com estampas do ramones, do cramps, do new york dools. um furto solitário sem meus comparsas de velório, de primeiras agulhadas, das cinco horas e meia de viagem que nos separavam da despensa e de todo o resto. 
tudo que eu mais queria na volta era cantar no microfoninho aquela música do barão vermelho que gritávamos dentro do carro emprestado. o galo também nunca tinha cantado.


2 comentários:

  1. Ai que saudade dessa escritura-labirinto, cada vez mais adornada e derrendada com dourados fios de Ariadne prontos às infinitas saídas.

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    1. Gabi!! do desejo-incessante meu de ti como leitora, sua revinda aqui é presente-puro. dos presentes que o tempo não nega, não rouba. logo, nosso abraço.

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